quarta-feira, abril 19, 2006

Memórias esquecidas da guerra....

Já era noite quando finalmente fomos para a caserna. Eu era motorista o que na prática significava que era a carne para canhão. Eram os motoristas que mais fatalidades tinham na guerra. Uma bomba anti-tanque raramente fazia feridos. Já eram umas 11 da noite quando o pessoal na caserna começou a acalmar. Era comum o pessoal descomprimir de noite. Tinhamos a sensação que ali estaríamos seguros. Claro que já tinham havido casos de chuva de morteiros dentro do aquartelamento mas os 2 metros de profundidade da caserna dava-nos alguma paz de espírito. Foi nessa altura, que o capitão interrompeu pela caserna a dentro. Não foi preciso ele abrir a boca para percebermos o que lá vinha. Só havia uma razão pela qual ele entraria a uma hora daquelas no nosso "santuário"... Alguém tava entalado. Havia uma companhia que tinha ficado "presa" no mato. Estavam "em combate desde perto do anoitecer". Eles tavam sem monições e sem hípotese. Se ninguem lá fosse ajudar eles aumentariam a já grande lista de "heróis da nação". Por momentos pensamos no apoio aério mas sabiamos bem que a força aéria não saía com nada de noite. "Esta saída é voluntária" disse o capitão. Mas ali rápidamende aprendíamos que uns dependem dos outros. Era o que nos impedia de transformar em animais, aquela era a nossa família. Rapidamente acenámos ao capitão como lhe dizendo "estamos todos dentro!". Ele esboçou um "Certo!" que foi um misto de "já sabia" com "e agora vem a parte pior". Preciso de 3 veículos comigo. Dois unimog(uma espécie de jipe com esteroídes) e uma berlier(uma camioneta de caixa aberta para transporte de homens). Bem como só estavam 3 condutores na caserna depressa me apercebi que esta não falhava. Depois arrematou: "Vou levar 20 homens, vamos atacar com força!". Força com vinte homens quase suava a anedota mas bem armados ainda conseguiamos fazer muitos estragos. Equipámo-nos e saimos da caserna. O silêncio até ás viaturas foi acompanhado pelos olhares frios que lançavamos uns aos outros. Sabiamos que não voltavamos todos. Não daquele tipo de missões. Sentamo-nos nas viaturas e começámos a olhar uns pós outros... E agora quem fazia de rebenta-minas? Rebenta-minas era o nome dado ao primeiro carro da comitiva. E quando pensavamos nisto ouvimos o jipe do capitão. Passou por todos os veículos e colocou-se à frente. Nunca tinha-mos visto tal coisa. Eles gostavam sempre de ir no "quentinho" do meio da comitiva. E enquanto olhámos incrédulos para aquilo sentimos a alma encher-se ainda mais de coragem. Era de homem! É estranho a cabeça humana. Algo que nós soldados faziamos todos os dias feito por patente mais elevada parecia o mais louvável dos comportamentos. O certo é que resultou. Estávamos no ponto. Ouvimos um "Sigam-me!. Vamos a cagar lume o caminho todo!". Tinhamos um morteiro por cada unimog e dois na berlier. Por cada 20 segundos soltávamos um para cada lado da estrada. Aquele espectáculo bélico era digno de se ver. Parecia o fogo de artifício das festas da santa terrinha. Até deve ser pecado gostar de ver o céu de moçambique iluminado pela luz do morteiro. Mas lá que era bonito... Íamos com as luzes ao máximo e com o prego a fundo. Não havia tempo a perder. Tinha posto a G3 pronta a disparar ao lado. Ali não havia tempo para perguntar primeiro e disparar depois. Ao minímo sinal... Conseguímos chegar lá a tempo. O inimigo assustou-se com a nossa chegada, talvez vencido pelo cansaço de mais de 3 horas de combate e bateu em retirada. Nessa noite ninguém morreu. Nessa noite.....

1 comentário:

Alexandre disse...

Muito bem escrito...estou ansioso pelo próximo capítulo. Se fizeres render o peixe podes publicar um livro sobre isso...continua!